segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O destino faz-se caminhando



   Eram quatro da manhã quando o meu autocarro chegou a León, Espanha. Diogo, o meu amigo que estagiava na cidade, esperava-me para a festa pagã de San Genarín que se celebrava naquela mesma noite da Semana Santa.
    Não era importante a viagem inesperada que tinha deixado para trás, nem a súbita decisão de o ir ver. Tudo bateu certo.
    - “Diogo, tal como vim, não tenho planos! Não sei o que podemos fazer por aqui.”
    Como pessoa enérgica e idealista que é, disse-me logo com os olhos verdes bem vivos:
    - “Tens mochila? Saco-cama? Tive a ver o tempo, vai estar bom! Amanhã vai-se para os Picos da Europa!”
    Amanhã será, no amanhã assim foi. De mapa na mão, seguimos à boleia em direcção a Norte. E, como sempre as previsões meteorológicas funcionaram...Já à entrada do Parque Nacional dos Picos da Europa a nossa boleia anunciou que ia voltar para trás. Nevava bastante e não estava preparado para seguir caminho.
     A nossa decisão foi a de ficar. Tentaríamos a sorte, porque não fazia sentido desistir agora. Claro que as vestimentas não se apropriavam à neve: os meus ténis de montanha, aliados às minhas calças de ganga rotas, faziam a perfeita combinação com o meu gorro de pom-pom no topo. Só escapava o semi-impermeável. O Diogo sempre tinha uns ténis-bota e uma capa comprida de tecido forte.
    Caminhámos até à placa que indicava uma aldeia a 1km para Oeste. Não passavam carros, e o caminho da estrada principal começava a ser só gelo. Teria de dar por ali! E quando já custava caminhar na neve que nos dava por cima dos joelhos, e nos questionávamos do porquê de algumas das nossas decisões, vimos um carro a vir ao longe: um jipe parou ao nosso lado, e um senhor de cabelo grisalho e cara magra abriu-nos a porta preocupado:
    -“Pois que fazem aqui fora com este nevão?!” – disse-nos num espanhol apressado – “Entrem, entrem.”
    Trocou algumas palavras com o Diogo, que fala espanhol fluente, e ficámos a perceber que era o padre da aldeia. Diogo explicou-lhe o que fazíamos ali, e que queríamos pernoitar num abrigo de montanha mais longínquo.
   -“Será impossível lá chegarem. Vocês apanharam o nevão do ano. Os acessos estarão cortados.”
    O prestável senhor parou o jipe em frente a uma das poucas casas daquela aldeia rústica, e à porta apareceu uma senhora idosa, dos seus 80 anos. Trocaram algumas palavras, e disseram-nos para entrar.
    Nessa tarde, aquecemo-nos à lareira de uma pequena cozinha velha, foi-nos servido um café quente, e deram-nos dois pares de galochas para a neve.      
 
Pernoitámos numa antiga escola, no cimo da aldeia, que agora estava remodelada, com paredes firmes e janelas modernas. Será um bar para atrair os mais jovens, disseram-nos. 
    Soube que nem ginjas (aliás, melhor que ginjas!), aquele lugar esquecido, a companhia de alguns habitantes que apareceram ao final da tarde para comer uns “cacahuetes”, e a lenha que apanhámos e que, embora húmida, nos tenha permitido adormecer nos nossos sacos-cama, sem que sentíssemos a tempestade que se fazia lá fora. Pela janela, a neve caía intensamente embalada pelo vento forte, como que ao ritmo dos relâmpagos que iluminavam a noite por instantes... Adormecemos tarde, entre conversas incentivadas pelo “licor de hierbas” que trazíamos na mochila. Calhou-nos bem aquela alcofa improvisada e quentinha, em que nos sentimos realmente tranquilos.
    Acordámos com a visita do padre, e com uma aldeia pitorescamente branca.-“Apressem-se para o pequeno-almoço!”- disse-nos.
    Na casa da senhora que nos tinha recebido estavam agora mais 3 pessoas de rostos marcados pelo tempo. Enquanto nos foi servido um café, sopa e lentilhas, foram trocadas conversas... naquela aldeia que parecia ali esquecida e nunca visitada, já não haviam crianças nem jovens... a pessoa mais nova estava ali presente, e teria uns 50/60 anos. Rostos cansados de gente que sempre trabalhou para viver, mas que nunca recusa a confiança e ajuda a quem poderá passar, mesmo que por engano...
    Na memória ficam os momentos de silêncio trocados naquela cozinha, quando os pensamentos se perdiam... ouvia-se apenas o crepitar da lenha na lareira, e o tempo parecia mesmo parar. 
    “Valeram-nos mais que ouro, aquela gente a quem prometemos voltar um dia!...” Lembro a um Diogo bem-disposto e ainda absorto no que tinha acontecido.

   “There is no destination. The journey itself is the essence of life experience.” Li um certo dia. E não é que, quase sempre, faz todo o sentido? 

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