sábado, 29 de janeiro de 2011

Senhores do Destino (parte 1)

A vida é construída com escolhas, falhas e oportunidades. Ou será que não? Maria Maltia, o senhor do Ford e Mariusz Musialsky pouco ou nada têm em comum nas suas vidas, excepto o poder de decidir por elas. Em retrospectiva ficam histórias de vidas, arrependimentos e opções. Seremos nós os que ainda podemos decidir?

            A manhã começa cedo em Victoria, na ilha de Gozo. Esta ilha mediterrânica que faz parte da República de Malta está ainda longe da influência dos novos tempos de inovação tecnológica, e do rebuliço dos grandes pólos urbanos europeus.
Com uma área de 67 km², é a segunda maior ilha de Malta, mas claramente ainda não sentiu o desenvolvimento turístico que caracteriza a ilha principal.
Dominada pelo calcário amarelo tanto nos terrenos, como nos edifícios onde é usado como material de construção e raramente pintado, muitas vezes ocorre parecer estar-se numa região desértica do norte de África.
            Victoria, é a sua cidade principal, ponto de ligação entre todos os autocarros que se destinam a diferentes partes da pequena ilha. Para onde quer que se vá, tem de se passar em Victoria para trocar de transporte. E sendo, normalmente, esperas prolongadas há tempo para explorar um pouco.
            A história de Gozo está conectada com a de Malta, visto sempre ter sempre sido governada por esta, excepto na altura de Napoleão, que conquistou as ilhas e cedeu independência a Gozo entre 1798 e 1800.
            Da sua longa história de conquistas e reconquistas, ficou um património rico em história, e uma cativante mistura de culturas e línguas.
            Na Europa de hoje ainda existe um local onde se conseguem transportes por menos de 50 cêntimos e apartamentos para alugar acessíveis. As vias de transporte são poucas por isso é recorrente conseguir apanhar-se boleia de algum tractor que passa. Vive-se da agricultura, e do turismo.

Maria Maltia

            Em Victoria, pelas ruas estreitas da cidade antiga, e ao lado de uma porta cheia de postais e artesanato local, encontra-se uma porta de madeira, cuidadosamente tratada, com permissão apenas para a parte superior desta estar aberta. Dentro, uma senhora de ar simpático, cabelos brancos e avental florido, olha concentrada através dos seus óculos grandes para um apoio cilíndrico que suporta uns alfinetes finos e com cabeças de várias cores.
            Esta actividade chama a atenção, e Maria Maltia, como faz questão de se apresentar contente pela rima, recebe amistosamente os curiosos. Num sorriso sincero e com um inglês extraordinariamente fluente para uma pessoa que aparenta não ter menos de 80 anos, explica o seu trabalho.
            “Isto cruza-se esta linha com esta. Assim. E agora passa esta. Assim.” Explicou e repetiu com um gosto que transparecia a dedicação que dava àquela arte. Maria trocava e cruzava linhas finas com uma habilidade jovial. Pregava mais um alfinete e pegava noutro que seguia percurso idêntico. O resultado demorou a ser perceptível, mas alguns exemplares já estavam em exposição à espera de serem comprados.
            Ninguém o percebe porque não há publicidade a tal. Mas Maria fala do resultado final, umas pequenas peças rendilhadas e de cores diferentes: “Podem servir para colocar nos livros. Como marcadores. Se quiser dar uma ajuda… cada um dá aquilo que puder”, diz enquanto mostra a caixa de notas e moedas que guarda perto de si.
            Maria desperta a curiosidade, sentada junto à porta e ao final das escadas daquilo que aparenta ser a sua casa. Bijutarias penduradas pelas paredes brancas, a garrafa do gás apoiada no último degrau. O seu ar compenetrado torna-se fascinante, e ela continua a conversar, como se não precisasse de o fazer, mas sim por querê-lo.
            Desde pequena que vive em Victoria, e nunca aprendeu a ler nem a escrever. A sua vida e o seu trabalho nunca diferiram muito daquilo que se conta por cá sobre o Portugal de antigamente. Gozo, era e é uma ilha pobre, mas que sofreu influências inglesas, por isso, Maria foi servir às mesas num dos melhores hotéis da ilha. “Foi daí que aprendi o meu inglês”, explica. “Tive de o aprender para me desenrascar!”
            A sua vida não foi feita de oportunidades, talvez porque não as tenha procurado. O facto é que pergunta avidamente qual o país de origem e o porquê de se estar ali. Ao responder “Portugal”, Maria faz um ar pensativo e pensa já cá ter estado. “Eu só saí uma vez da ilha, e foi para visitar o meu filho que está na Austrália”. Austrália, pensa-se! Destino tão ambicionado por tantos que parece ironia. Prossegue: “E eu lembro-me que tivemos de mudar de avião. Parece-me que foi em Portugal.”
            A sua fala é sempre pausada e perceptível, mas desta vez a memória parece falhar-lhe. Está quase certa que parou em Portugal, mas não está nada certa da sua localização. Viajar pode ser uma coisa confusa, principalmente para quem não está habituado.
            Maria conta com uma certa nostalgia como o seu filho está muito longe, e como o que recorda melhor da tão grande Austrália são os momentos com ele. Depois prossegue o diálogo falando de câmbios e moedas. Isto do euro faz-lhe muita confusão. “Eu não percebo nada. Por isso tenho sempre que me auxiliar para não ser enganada”, conta, enquanto pega num pequeno caderno como os distribuídos no início das campanhas de mudança da moeda. Uma cábula com os valores e equivalências para a antiga, a lira maltesa.
            Agora vive do que consegue bordar, já com o peso da idade na vista. “A reforma não chega para nada, isto aqui é tudo muito pobre. Lá vou conseguindo estes dinheiros!”, desabafa enquanto a concentração se direcciona para a sua arte.
            Ao perguntar-lhe por algum restaurante ali perto para se comer qualquer coisa, Maria pára de bordar. Silêncio. Depois continua compenetrada e abana a cabeça: “Não sei… Aqui é tudo caro. É muito caro ir ao restaurante. Melhor comprar no supermercado e fazer.”
            Antes de ir, uma última confissão: “Eu nunca pude ir a lado nenhum, excepto à Austrália. Aproveitem bem. Divirtam-se. Porque eu nunca tive tempo para isso porque nunca tive um carro…”. Repetiu-o várias vezes, como se quisesse deixar bem ciente e memorizado que para onde a tristeza lhe fugia era para o tempo que passou rápido demais e não o soube controlar. “Nunca tive um carro. Nunca pude aproveitar.”

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